CINCO PASSOS PARA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS COLETIVOS

  

INTRODUÇÃO

 

 Ao longo de muitos anos de trabalho no Ministério Público de Minas Gerais, fomos refletindo, experimentando e consolidando práticas na vivência do cotidiano de atendimento à população e o consequente trabalho conexionado a direitos coletivos. Assim, certas metodologias se mostraram eficazes – em muitos casos – na consolidação da mediação e mesmo resolução de conflitos socioambientais.

Organizamos essa forma de atuação naquilo que chamamos PROGRAMA JUSTIÇA RESTAURATIVA SOCIOAMBIENTAL.

 O Programa Justiça Restaurativa Socioambiental teve início no ano de 2012, na cidade de Lavras, Minas Gerais e continua a ser implementado no exercício da Promotoria de Justiça de Caxambu, a qual cumulamos atuação com o NUTA – NÚCLEO INTEGRADOR PARA TUTELA DA ÁGUA.

 

Assumindo, em 17.006.2009, a Coordenadoria Regional das Promotorias do Meio Ambiente das Promotorias de Justiça da Bacia do Rio Grande, que envolve 177 municípios e 79 Comarcas no Sul de Minas, logo pudemos observar que seria impossível uma atuação eficaz no âmbito da instituição do Ministério Público e com tantos reflexos sociais, sem um plano de trabalho que envolvesse parcerias e metodologias de trabalho específicas. Essa percepção foi se formando em meio ao contato prático com os problemas enfrentados, e a identificação de um número extremado de conflitos socioambientais. Identificou-se também disfunções institucionais de órgãos públicos e entidades privadas e situações de crise.

 

            Lida-se nessa questão, muitas vezes, com conflitos mais complexos, que envolvem, muitas vezes, significativa parcela da população, alguns casos de liderança dispersa, falta de representação eficaz de comunidades ou grupos, interesses políticos consolidados e empresas e iniciativas de investimentos econômicos com poder de barganha.

 

            Qual o caminho e decisões que podem atender a todos? Em quais situações são possíveis uma solução de consenso? Como vivenciar a realidade social de comunidades de forma que possamos identificar os interesses de seus moradores? Quais são os interesses mais legítimos? O papel do Estado e do Governo têm sido um propulsor de soluções ou mais conflitos?  Qual o papel de cada instituição na instauração do conflito?

 

Chamamos aqui de conflitos socioambientais as disputas entre grupos sociais provenientes de distintas formas de relações por eles mantidas. Isso tendo como pano de fundo o uso e suas relações com seu meio natural. Aqui estão presentes as questões da realidade biofísica do nosso planeta, ou da comunidade e região que habitamos, e também os chamados ciclos naturais. Nessa concepção entram também as questões próprias da realidade humana e suas estruturas sociais. Compõe-se assim, nessa análise – de visão do conceito de conflitos socioambientais mesmo – o relacionamento dinâmico e interdependente entre essas facetas.

 

Os conflitos socioambientais não são necessariamente acontecimentos negativos. Não nascem somente como pontos restritivos na integração social, mas como uma forma e parte necessária do processo cultural e da socialização.

 

A prática de mediação de conflitos, trabalhada no campo de atuação coletiva no Ministério Público, como dito, reforçou a necessidade de construção daquilo que chamamos os cincos passos para uma nova ética socioambiental.

 

Admitindo-se que a ética é um conceito em mutação, e obedece a dialética constante, para a formação do bem comum e pessoal, é aqui apresentado um caminho. Servir-se de um método (methodos, conjunção grega de meta: através de, por meio; e de HODOS: via, caminho) é, antes de tudo, tentar ordenar o trajeto através do qual se possa alcançar os objetivos projetados. Assim, esse trajeto aqui apresentado é posto em prática para resolução e mediação dos mesmos conflitos que têm se multiplicado em nossas comunidades.

 

Esses cinco passos, que compõem o percurso proposto, estão manifestados no primeiro passo que damos o nome de POLIS, no sentido de discussão pública, publicização dos assuntos, manifestação coletiva dos diferentes pontos de vista de forma aberta na cidade e na comunidade.

 

O segundo passo seria a manifestação da participação, o que nominamos PARTICIPATIO, do latim que significa partilha, compartilhamento, dar algo ao outro e, aqui, se integraria com o conceito de POLIS, à qual procuramos nominar o primeiro passo.

 

O terceiro passo seria o LOGOS. A necessidade do conhecimento técnico-científico que necessitamos para a resolução do conflito. A busca dentro do que temos em mãos que podem dissolver a superstição, os falsos interesses, a ignorância, sempre à luz do que se produziu no campo da ciência.

 

O quarto passo seria o PRAGMA. A escolha das ações que serão encetadas para enfrentamento do problema. A decisão participação e mais democrática possível para atuação concreta e eficaz face a complexidade dos conflitos que emergem, ouvidos vários atores sociais envolvidos.

 

O quinto passo seria a consolidação do ETHOS. Resgatar os possíveis sucessos, erros e resultados, para inseri-los dentro de uma ética que se processa como conceito nuclear, porquanto dialético e dialógico, no plano socioambiental. Propõe-se nas comunidades um novo costume que possa trazer uma vida mais plena e sadia depois de um caminhar construtivo e prospectivo.

 

Aqui analisaremos cada passo, dentro das propostas apresentadas.

  

O PRIMEIRO PASSO: POLIS – A PUBLIZAÇÃO DOS PROBLEMAS

 

         Importante observar como vivenciamos na comunidade, ou em um espaço social mais amplo, um determinado problema a ter uma posição pessoal, e a premente necessidade de compreendê-lo com mais clareza, ter uma visão social e política, uma opinião técnica, e não sabemos como nos colocar.

            A publicização do assunto, da discussão, é a proposta de um passo inicial nesse caminho de tentativa de mediação.

            Quando identificamos um conflito socioambiental em determinada comunidade, ou conflitos de maior proporção que atingem todos o país, ou regionais maiores, o primeiro fator de importância é ouvir as diferentes falas e visões da questão. As reuniões ou audiências públicas são essenciais para se ouvir as partes interessadas. Essas, muitas vezes criticadas como um instrumento de proselitismo político e inoperância prática, são essenciais nessa percepção do problema.

            Colocar em público o conflito é discuti-lo abertamente e ouvir a opinião, por mais diferente e inaceitável, sob vários pontos de vista. As reuniões setorais podem ser organizadas com um cronograma de falas e atuação. Com registros de todas as comunicações, ideais, e providências de documentação das propostas e interesses. O começo dessa caminhada não se faz sem essa publicização da temática de modo vário e respeitoso. A identificação do lugar de fala dos vários grupos e pessoas é essencial para a busca de um consenso possível.[1]

            O acontecimento de uma discussão pública, mesmo dentro da possibilidade de vivência de uma catarse confusa efetiva a efervescência das liberdades de opinião ante a situação divergente e revoltante, buscando-se marcar posições sobre as formas de resolução.

            A organização de falas, tempo, propostas, perspectivas de criação de comissão específica, possibilita que a discussão no espaço público seja produtiva e producente de uma perspectiva de busca consciente e verdadeira por uma posição mais técnica possível.

            Há um adágio popular que diz que “toda reunião pública que passa de uma hora e meia vira comício”. As chamadas reunioses são “reuniões” não bem organizadas onde se discute muito e se delibera pouco ou nada. Com exceção da próxima reuniose. As reuniões produtivas, ao contrário, podem ser organizadas de forma que toda a realidade de reinvindicações, posições diferentes e reclamações possam ser registradas e avaliadas no conjunto do caminho proposto. Esses atos possibilitam o convite à necessária participação dos atores sociais envolvidos.

 

O SEGUNDO PASSO: PARTICIPATIO – A NECESSÁRIA PARTICIPAÇÃO DOS ATORES AFETADOS

 

            A consolidação de decisões democráticas só é verdadeiramente possível com o exercício democrático que se revela com a participação popular na vida pública. Nenhum ato de construção coletiva ou pública se revelará justo e equânime sem a participação daqueles que são conhecedores da realidade vivida e do problema a ser enfrentado.

            A participação do cidadão na elaboração das políticas públicas municipais é acreditar que na chance de que decisões administrativas de nossos governantes podem ser mais consistentes e eficazes, trazendo efetivo ganho ao bem comum, não interesses particulares ou de grupos de poder.

            Segundo o IPEA – Instituto de Pesquisas de Economia Aplicada,[2] políticas de desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, segurança pública, defesa da igualdade racial, dos direitos das mulheres ou de minorias sexuais, dentre tantas outras, foram discutidas em 73 conferências nacionais que ocorreram no país sobre políticas públicas em determinado período.

            Ali, os assuntos abordados e deliberados foram desde saneamento e habitação a políticas de geração de renda, reforma agrária, reforma urbana, direitos humanos, política científica e tecnológica. Foram efetivadas a participação popular nas questões sobre o uso das águas, estratégias para o desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs), passando por temas específicos como saúde indígena ou defesa dos direitos das minorias sexuais.

            No espaço local, comunitário, a discussão dos conflitos não prescinde dessa participação, se almejam resolução ou consenso possível. É comum escutarmos falas típicas das retóricas da indignação. Cidadãos que criticam a tudo e todos – “tudo isso que está aí” – mas não assumem qualquer ato de participação nesse espaço confuso e desigual que está diretamente ligado à forma como vive e se desenha o futuro das gerações que ainda virão.

            O chamamento à participação dos atores sociais envolvidos ou diretamente interessados é vital para compreensão e resolução do conflito. O ato social e político de participação é uma etapa a ser incentivada com esforço.

 

O TERCEIRO PASSO: LOGOS – O CONHECIMENTO TÉCNICO-CIENTÍFICO DISPONÍVEL

 

            O terceiro passo é assimilar e compreender o conhecimento técnico que se tem sobre o assunto. As diferentes percepções científicas, dentro das visões da perspectiva das ciências humanas e exatas. Entender a necessidade de separação da superstição, a simples crença e opinião (doxa), em apontamentos técnicos que sejam válidos e compreensíveis a todos.

 

O QUARTO PASSO: PRAGMA – QUAIS AÇÕES SERÃO EFETIVADAS?

           

            As ações (pragma) que envolvem atos concretos de resolução da questão, ou mudança de visão, devem ser estabelecidas segundo o que se dispõe num quadro de atuações possíveis. Viabilizar as ações e estabelecer a construção de uma ordem de “fazeres” aptos a posições de consenso e mudança.

 O QUINTO PASSO: ETHOS – A PERSPECTIVA DE CONSOLIDAR UMA NOVA ÉTICA SOCIOAMBIENTAL

            Publicizando, conhecendo a questão, participando da busca de soluções, discutindo as respostas técnicas disponíveis e atuando e agindo para a mudança efetiva, é necessário que se concretize um novo comportamento. Uma nova ética socioambiental (ethos) que se irá se integrar a um plano de comportamento equânime, mais justo e integrado em uma nova ordem de saberes.

[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugar_de_fala. Conquanto seja ainda um conceito um tanto impreciso, polêmico até, usamos aqui a concepção de lugar de fala, não como uma posição característica, social, de determinados grupos ou pessoas, mas uma visão da perspectiva de diferentes discursos e posições que são apresentados dependendo da realidade do poder efetivo, exercido dentro da sociedade. Essencial aqui, nessa fase, buscar a posição de onde o grupo ou indivíduo está olhando o problema, o mundo, e sua perspectiva de participar dessa atuação.

[2] Conforme artigo publicado no Nº 65 (edição) da Revista do IPEA – 2011, ano 08. 05.05.2011. “A participação popular: a construção da democracia participativa.”