Pintura de Samuel Hirszenberg de 1907 de Baruch Spinoza, condenada ao ostracismo pela comunidade judaica local em Amsterdã. Fotografia: Culture Club / Bridgeman / Getty Images

 

Steven Nadler é um estudioso estadunidense que se destacou na compreensão abalizada da obra de Bento de Espinosa (ou Baruch como era conhecido entre os judeus de sua sinagoga). Espinosa foi um filósofo judeu holandês-português do século 17, que foi submetido à excomunhão (herem, em hebraico) pela Congregação de Judeus de Amsterdã, e por ter emitido em seus escritos opiniões consideradas heréticas.

O trabalho de Nadler, Um Livro Forjado no Inferno, nos traz luz sobre o Tractatus de Espinosa, justamente a obra que causou todo o escândalo na época, prenunciando o nascimento do que podemos compreender como a Era Secular. Trata-se de uma leitura cativante e reveladora que nos remete a conflitos religiosos, sociais e políticos que vivenciamos atualmente em nossa sociedade. Pode parecer tautológico mas é visível a noção de que a natureza humana ainda é a mesma passados tantos séculos.

A Era Secular pode ser entendida como a superação da visão de que as instituições, a prática da política, a administração do Estado, só poderiam encontrar legitimidade se estivessem em consonância e garantidas pela fé num Deus onipresente. Foi a transição no pensamento humano de que a ciência, a administração pública, a organização legal das nações não poderia ser somente ditada pela prática religiosa eleita, e por escrituras prescritas por entes metafísicos.

Capa da obra "Um livro forjado no inferno", do professor de filosofia Steven Nadler, biógrafo de Espinosa e um de seus principais especialistas.

Fugindo da Inquisição, a família de Baruch migrou para Amsterdã durante os anos florescentes da recém-autônoma República Holandesa. Na época, o brilhante jovem estudante Espinosa tinha apenas vinte e três anos quando, em 27 de julho de 1656, sua própria congregação, no canal Houtgracht da cidade, colocou sobre sua pessoa a marca da proibição formal de banimento.

A professora Marilena Chauí explica (Espinoza, Uma filosofia da Liberdade, 1994/16-17) que em 1492, após a tomada de Granada pelos reis católicos Fernando e Isabel, os judeus, que há séculos viviam na Espanha, foram obrigados a escolher entre a conversão forçada ao cristianismo ou a expulsão. Ademais, a maior parte de seus bens eram confiscados para aumentar os recursos da coroa Espanhola na corrida pelos mares e descobertas marítimas. Foi dessa forma que a família de Espinosa, como muitas outras, fugiu para Portugal. Ali, porém, seis anos depois aconteceu a mesma coisa naquela país. Os judeus foram obrigados a escolher entre a expulsão e a conversão ao cristianismo. O fato é que os cristãos-novos (língua portuguesa) e marranos (língua espanhola) receberam esse nome porque eram aqueles que foram forçados a adotar o cristianismo e se converter. Foi em meio a essa forçada conversão que Miguel, pai de Espinosa, decide migrar de Portugal para a cidade francesa de Nantes, e depois foram para Amsterdã, na Holanda.

A obra de Espinosa referida em Um Livro Forjado no Inferno é o Tractatus Theologico – Politicus (Tratado Teológico-Político) que foi considerado pelos contemporâneos e seguidores do filósofo como o livro mais perigoso já publicado.

A acusação contra o livro subversivo era também que ele “ameaçava a fé religiosa, a harmonia social e política e até mesmo a moralidade cotidiana

E por que o Tratado Teológico Político (TTP) é tão atual? O Tratado, que foi sendo lido e estudado nos séculos seguintes à morte de Espinosa, indica os princípios do pensamento liberal a serem compreendidos, aponta a razão da necessidade de separação da Igreja e do Estado, bem como os esforços para implantação real de um regime democrático.

Sem ser panteísta, a filosofia ética de Spinoza é baseada na busca da compreensão e do amor racional de Deus, levando à liberdade e bem-aventurança humanas. Seu argumento é que tudo na natureza, incluindo os seres humanos, se esforça para perseverar em seu ser, um desejo inato que ele chamava de conatus. A concepção da imanência entre Deus e a Natureza leva a uma nova ideia da felicidade e da liberdade, inédita no pensamento moderno.

Hoje revivemos fenômenos passionais de tentar ligar a política a anseios religiosos e morais, tragando rebanhos que sempre estiveram à mercê de lideranças e discursos que mostrassem “o caminho” da alternativa ao sofrimento.  

Estátua de Baruch Spinoza em Amsterdan.

Fatos sociais aparentemente modernos como negacionismo da ciência, propagação de notícias falsas para manter um estado de situação conveniente às suas crenças e interesses específicos, anti-intelectualismo, desconsideração pela educação, já eram postos há séculos como verdades estabelecidas sem o exame racional ou científico.

Steven Nadler abre seu livro trazendo um excerto de Espinosa do Tratado: “Os piores hipócritas, animados pela raiva a que chama zelo pelo direito divino, perseguiram por toda parte homens insignes pela sua honestidade e reconhecidos pela sua virtude e, por isso mesmo, malvistos pela plebe, reprovando publicamente as suas opiniões e inflamando contra eles as fúrias da multidão. E esse abuso descarado, porque se acoberta sob aparência de religião, não é fácil de reprimir.” Espinosa teve amigos presos e mortos na cadeia por emitirem opiniões seculares.

Talvez seja necessário retornarmos ao estudo e compreensão de Espinosa. Até por que, animados pela raiva, por algum fator escolhido e pelo ódio, hipócritas morais ainda parecem mais vivos do que nunca, colocando-se como eleitos da decência, e predestinados pela mão divina, assumem-se representantes de uma autoritária verdade única, sempre usando a religião como escada.