As dificuldades que nos são postas à frente são forças que nos impõe a nos testarmos a nós mesmos, perante os outros, diante do tempo e da sociedade, e o espaço cheio do mundo em que vivemos: complexo e violento; e onde há amor e também ódio e morte. Forma-se o processo orgânico de ação e reação em busca de sobrevivência. Esse processo se apresente frente ao grande mistério e teste mesmo da existência. Essa força pela sobrevivência, por um impulso à frente, arrostar-se perante a luz do mundo e da vida, talvez seja o Nietzsche chamou de vontade de potência.
Muitos ficarão pelo caminho, agarrados a seus princípios ou perdidos em seus próprios erros e convencimentos. Alguns, nem isso. Outros, atordoados pela própria dificuldade de ler o mundo e seus sinais tentarão sobreviver. Grupos dispersos pelo mundo, quem sabe, encontrarão estradas menos pedregosas. Mas algo sempre ficará.
Os antigos gregos chamavam essas dificuldades críticas, dentro de um plano de autoconhecimento, que nos faziam ver a realidade de outra forma, como aporias (Ἀπορία). No grego antigo ela trazia a forma (ideia) de dificuldade, caminho inexpugnável. Era o próprio ato do enfrentamento das dificuldades apresentadas. Obstáculos imprescindíveis à descoberta da certas verdades e sentido.
Diante da dificuldade, da confusão, encontramos dúvida, medo, ilusão, receios de vários matizes, mas acima de tudo um sentimento de realidade: a vida possível, a forma real. O senso comum cultivou a ideia de que sofrer faz parte da evolução e de crescimento espiritual.
Olhando de outra forma, podemos talvez concluir que a dialética interna, inconsciente, nos faz predizer o que nos incomoda, e ver no outro aquilo que não entendemos bem. A língua – vista aqui como essa compulsão por avaliar, opinar, subjulgar, expelir voz – é o primeiro sinal do que acontece, do que se lhe parece, ou do que se lhe falta. O verborrágico ataque ou incontida defesa. O dilacerado grito que agora emerge. O irretorquível chiste que não se conserta. Os gestos e as palavras interrompem a agitação interior para nos colocarmos diante do mundo como mais poderosos e conscientes do que na verdade o somos. Como se nosso dedo apontador de erros alheios fosse imagem melhor para aplainar nossa consciência irregular. É luta interna que continua. É o nosso impulso pra sobreviver. É nossa emergência para não morrer. É a loucura do mundo, de todos contra todos, emergindo na célula familiar e em pequenas comunidades. Por vezes estamos todos muito cansados. Cansados da caminhada.
O ressentimento pode grassar como um sintoma, uma doença cujas feridas não há possibilidade de esconder. Pois elas supuram. E a voz do ressentimento é sempre revestida de muita certeza, de atroz revolta contra os culpados eleitos e a perspectiva de novas expiações. É preciso então corporificar um responsável, concluir um movimento imagético que abarca o achado de todo sofrimento. Seja ele uma pessoa, um grupo, uma raça ou uma instituição. O bandido, o ladrão, o corrupto, o imoral, o destituído de Deus, o que não tem ética, o errático é sempre o outro identificado em suas ações deletérias, que deve ser combatido com todas as armas possíveis.
As dificuldades, as decisões de poder, as ameaças físicas e morais, as decisões mais corretas, o ser justo diante de tudo e de todos revolve o que mais incontido existe. Mas muitas vezes aumenta o mau cheiro no ar.
O processo de degradação física e mental que está imposto ao homem faz reviver a reflexão da insignificância de nossas opiniões, nossas armas eleitas, nossos ódios, nossos conceitos contraditórios, medos incontáveis, diante de quem está perto, e sempre esteve, e diante de quem está longe, e não nos lembramos.
Amadurecer, como os frutos e as sementes, como o caule da planta e as folhas e flores, talvez seja tarefa dada ao tempo. As intempéries apresentam-se como o teste para o florescimento para algo de mais sentido, visão, justiça, paz. Ou não amadurecerá nunca. Ou morrerá antes do tempo. Breve como uma folha seca incorporada à serrapilheira.
Serapilheira é a camada formada pela deposição dos restos de plantas (folhas, ramos). Como também acúmulo de material orgânico vivo em diferentes estágios de decomposição que reveste superficialmente o solo ou o sedimento aquático. Foto: redes sociais.
O alquimista Paracelso escreveu que aquele que pensa que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas. Talvez ele estivesse querendo dizer que tudo tem seu tempo. O segredo seria saber reconhecê-lo, identificá-lo para poder melhor agir.
Sim, as intempéries ou seus adversários podem te destruir. Ms nem sempre o outro é um inimigo, apenas está tão perdido como você, buscando o mesmo espaço no mundo. Tentando encontrar as palavras corretas, ou expressões que não sabe dizer. Por vezes a realidade não é o que ele diz a você mas, acima de tudo, o que não está conseguindo lhe contar, lhe desenhar, carente entre suas próprias narrativas e palavras.
O homem quer ser justo. O conceito de Justiça cotidiano não é relativo. Como se fosse possível cada um ter a sua ordem iniciática ou a própria e especial regua para medir suas ações e reações.
Não existe Justiça sem afeto. É na provação, no desencontro, na medição de armas, que podemos nos encontrar a nós mesmos entre os caminhos dos possíveis erros e ilusões. Ah, quantas ilusões perdidas. Alguns conseguem estar em paz, outros nem tanto.
Há mais de dois mil anos atrás um mestre disse que devemos considerar os lírios no campo, que não trabalham nem fiam; e contudo nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles.
A grande certeza que temos em nossas opiniões, ou nossa “grande justiça pessoal”, de visão de mundo, também algum dia será lançada ao fogo, como ervas que nasceram, cresceram e terão, de uma forma ou outra, sua finitude.
Campo de Papaoulas. Fonte: Redes Sociais.